UNO Dezembro 2013

Quando menos é mais: os Novos Estados

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Algumas Constituições, e entre elas significativamente a espanhola, se lançaram a uma prodigalidade extrema na concessão de direitos materiais aos cidadãos que, em pouco tempo, ficaram perdidos no terreno declamatório da retórica populista. A Constituição da Espanha declara –e parece sarcástico, embora não o seja em absoluto– o direito ao trabalho (artigo 35) embora tenhamos 27% de desemprego; também o direito a uma moradia digna (artigo 47) quando há mais despejos de inquilinos que nunca; a um sistema de proteção aos deficientes físicos e aos idosos (artigos 49 e 50), conhecido como ajudas à dependência, todos severamente cortados pela crise… e uma dezena mais que contribuem para uma carga orçamentária ineludível.

Não é estranho que as sociedades com cartas magnas tão generosas nos reconhecimentos sintam uma certa frustração e a estranha sensação –que causa vertigem– que o Estado de bem-estar, inclusive meramente o Estado, falhou em seus mais básicos, solenes e sagrados compromissos. É certo que isso aconteceu em muitos casos porque a recessão foi literalmente brutal e em outros porque houve políticas públicas dispendiosas e reprováveis. Mas a realidade é que, por uma parte, o Estado surgido da Segunda Guerra Mundial e moldado na social-democracia e na democracia cristã se expandiu além do razoavelmente previsível e, além disso, as disponibilidades públicas estão tão minguadas que requerem cortes no núcleo duro das prestações básicas: educação, saúde e serviços sociais.

Não é estranho que sociedades com cartas magnas tão generosas nos reconhecimentos sintam uma certa frustração e a estranha sensação que o Estado de bem-estar falhou em seus mais básicos compromissos

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A relação entre os conceitos de Estado do bemestar e saúde e educação pública –em outra medida também os serviços sociais– é de caráter histórico. Poderia dizer-se que ontológico. Havia Estado na medida em que os impostos custeavam em centros públicos as despesas sanitárias e na medida em que um sistema público de educação formava nossos filhos e jovens. Esta relação histórica começa a quebrar-se porque, ao não serem financiados esses serviços públicos com impostos finalistas, o cidadão passou a co-financiá-los por vários procedimentos. Mediante o chamado copagamento (o setor farmacêutico já tem longa trajetória), mediante taxas e a restrição das prestações sanitárias e educativas (no primeiro caso, com a carta de serviços básicos, no segundo com a restrição de ajudas à alimentação e aos livros e de bolsas de estudos e a elevação de taxas para a matrícula na universidade). De tal maneira que a contribuição dos cidadãos ao Estado já não está se produzindo apenas e exclusivamente mediante os impostos e as taxas, mas, além disso, mediante copagamentos e cofinanciamentos.

As na Espanha denominadas “maré branca” (contra os cortes sanitários) e “maré verde” (contra os cortes na educação pública não universitária) tentam atalhar –embora não lhes faltem ingredientes de embates ideológico– que se produza em parte uma privatização do Estado. Ou, em outras palavras, que o Estado entregue à gestão privada os serviços públicos sanitários e que sejam criados –em saúde e educação– centros arrumados e privados que façam nossas sociedades mais duais.

A diferença entre pobres e ricos na Espanha não deixou de crescer. Segundo o relatório de Fomento dos Estudos Sociais e Sociologia Aplicada de 2013, a distância entre os 20% mais pobres e os 20% mais ricos aumentou em 30%. O economista Jordi Goula escreveu no jornal “La Vanguardia” com toda classe de detalhe e remissão a fontes solventes (8 de setembro de 2013, no suplemento Dinero) que os 10% menos favorecidos da sociedade espanhola têm acesso a 1,6% das receitas, enquanto aos 10% mais ricos lhes correspondem 24% das rendas.

As “marés” branca e verde na Espanha tentam atalhar o que poderia ser uma privatização do Estado em uma sociedade cada vez mais dual, de ricos e de pobres

É óbvio que a recessão primeiro e a crise depois foram criando uma brecha entre pobres e ricos sem que o Estado, os Estados afetados pela depressão (especialmente no sul da Europa), pudessem garantir como há uma década e meia as prestações básicas de saúde, educação e serviços sociais, se não estiver envolvida colaboração pecuniária dos beneficiados. Parece, em consequência, que, enquanto falamos de Estado fracassados em referência aos mais afastados das pautas ocidentais, a estrutura tradicional de prestações públicas falha com certo estrondo nos nossos.

É preciso pagar o serviço da dívida; atender os compromissos de Defesa (os mais caros) e manter os subsídios de desemprego e pensões (contributivas ou não) para que não se produza um autêntico desabamento. Nesta tessitura, a comunicação, as explicações e a pedagogia pública de por que se chegou a este estado de carestia e dificuldade estão sendo abordadas com grandes números e não menores discursos. Mas que não convencem; nem uns nem outros.

A alternativa parece ser a reformulação do Estado. É preciso estacionar –reformando as Constituições– as promessas oceânicas de direitos para ajustar a ação do Estado ao mínimo denominador comum: garantir a educação básica e média; proporcionar um acesso à universidade e à formação profissional em condições de igualdade inicial; oferecer uma ampla e plenamente gratuita bolsa de serviços sanitários e assegurar o sistema de pensões; e, certamente, o seguro desemprego. O menos, neste tempo histórico, é mais. Como consequência disso, a supressão de subvenções –matizando esta afirmação em relação ao âmbito da cultura, do esporte e da pesquisa– parece obrigatória, assim como a eliminação do elenco de direitos que não podem ser materializados. A austeridade deve incidir essencialmente na despesa política e no que consome as ações marginais das administrações públicas.

Atenção porque retorna o capitalismo de Estado, o que significa sua expansão, e isso ocorre nos países emergentes. As 19 maiores empresas do mundo são estatais

Como advertia Alejandro Rebossio (“El País” de 8 de setembro de 2013), “o capitalismo de Estado já não é tabu” porque os capitais públicos nas empresas estabilizam-se ou aumentam nos países emergentes que hão de ter a precaução de não cair no mesmo erro que os consolidados que abrangeram essa faceta empresarial e, mais tarde, a abandonaram por meio de privatizações. Atualmente 19% das maiores empresas do mundo são estatais e são China, Rússia e as nações emergentes –sempre segundo o autor citado– as que lideram este modelo. É, segundo demonstra a história, uma má política.

O Estado há de ser menos para ser muito mais no básico, no nuclear, no essencial: viver, educar-se e beneficiar-se da solidariedade social razoavelmente. O resto pode – e até deve – deixar-se à iniciativa privada no que é seu âmbito próprio (o empresarial e gerencial) e só de maneira muito destilada pode admitir-se sua entrada com fins lucrativos na gestão de alguns serviços públicos que, em opinião muito generalizada, não podem ser os que se correspondem com prestações básicas.

Quando escrevo este texto, a Justiça espanhola suspendeu cautelarmente as privatizações de vários hospitais na comunidade autônoma de Madri. O juiz que tomou esta delicada decisão –de fundo teor econômico– alega em sua resolução que não se termina de compreender por que “encarregados da gestão pública desse serviço essencial (saúde) assumem sua incompetência para tramitá-lo com maior eficiência”. Precisamente, pelo conceito de eficiência, se fissura o sistema público de prestações básicas. Daí que o desafio adicional consiste em que o Estado não só mantenha para si a titularidade e gestão desses serviços essenciais, mas, além disso, forme funcionários e profissionais com um nível de qualificação igual ou maior que os que prestam seu trabalho no âmbito privado. Também, menos funcionários, mas melhores gerentes. Igualmente, nestes aspectos, menos é mais.

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