UNO Março 2017

O inimigo da verdade

Donald Trump passou toda sua vida faltando com respeito à verdade. Funcionou muito bem nos negócios, nos reality shows e na política. E, embora o tamanho e a ousadia de suas falsidades o tenham convertido no epicentro do terremoto mundial da pós-verdade, é indiscutível que a mentira é uma velha ferramenta política em todos as partes. A grande novidade é o seu nível de aceitação entre uma parcela do eleitorado dos Estados Unidos, algo impensável em um país que nunca havia perdoado a falsidade, como demonstraram Watergate e tantos outros casos emblemáticos do puritanismo idiossincrático norte-americano.

 

Como explicar, então, o “fenômeno Trump,” a mudança de paradigma que supõe nossa sociedade e suas possíveis consequências disruptivas? Seriam necessários volumes para responder à complexidade da situação, mas, em resumo, o que ocorreu é que a política do espetáculo e a leveza se apoderaram de Washington. Apoiado por 62,9 milhões de eleitores trumpistas, alérgicos à “infeliz mania de pensar”, que infelizmente provoca o desprezo das classes pensantes, os egg-heads, da era maccarthista.

A política do espetáculo e a leveza se apoderaram de Washington

É verdade que o anti-intelectualismo sempre foi uma força latente nos EUA, que se mostra esporadicamente, mas nunca havia destruído com a virulência com que o fez na eleição presidencial de 2016. Nesta ocasião, foi reforçado pela onda dominante da emocionalidade política, que sobrepõe as crenças pessoais aos fatos objetivos. A verdade. De pessoas que votam com as vísceras e dão boas-vindas a tudo o que confirme seus preconceitos, ainda que cheguem na forma de notícias escandalosamente falsas, divulgadas por dezenas de sites on-line, como o National Report, Liberty Writers News, Breitbart, Empire News, InfoWars ou o Civic Tribune. E logo repetidas por um exército de ativistas Alt-right (o nacionalismo branco), e pelo próprio presidente Trump e assessores ao seu redor.

 

Mas, antes de mais nada, é importante colocar os números em um contexto: a população geral dos Estados Unidos é, oficialmente, de 325 milhões – incluindo residentes legais não nacionalizados –; 231,6 milhões têm capacidade de votar, dos quais apenas 138,8 milhões decidiram exercer o seu direito de voto e 92,7 milhões optaram por ficar em casa. Em outras palavras, Trump foi eleito por apenas 27% da população votante e 19% da população em geral.

 

Os números explicam a perplexidade que vive a esmagadora maioria dos cidadãos nos EUA. A sensação de ser personagens de ‘1984’, de Orwell – o livro mais vendido aqui este ano –, reféns, além disso, do que o historiador Fritz Stern chamou de “a irracionalidade popular“, que faz com que as massas se submetam ao “misterioso carisma dos ditadores”. Trump não parece ser, no momento, um ditador, mas por sua demagogia populista, tem tons cada vez mais autocráticos.

 

Trinta e três anos depois dessa sociedade antiutópica imaginada por Orwell, a Casa Branca criou seu Ministério particular da Verdade, a partir do qual nossos Winstons – como o personagem de 1984 – tentam inocular enormes mentiras, que a ministra da propaganda, Kellyanne “Winston” Conway, as chama, impunimente, de “verdades alternativas”. Como quando asseguraram que milhões de pessoas haviam participado da posse de Trump, aparentemente fantasmas, porque ninguém as viu; ou os cinco milhões – também espectrais – que votaram fraudulentamente, de acordo com o próprio presidente, a favor de Hillary Clinton. Sem esquecer os whoppers, com os quais o ególatra Trump, nos quis fazer crer que Obama havia “nascido no Quênia”, ou que o ex-presidente, junto com Hillary, foram nada menos que os “fundadores do Estado islâmico”.

 

E assim, um exemplo após o outro (132 falsidades de Trump apenas em seu primeiro mês, segundo o jornal The Washington Post), esta presidência orwelliana está revelando uma perturbadora estratégia: substituir a realidade objetiva por uma alternativa, silenciar os principais meios de comunicação e limpar toda a dissidência. Uma fórmula perfeita de manipulação da opinião pública, para os tempos onde a pós-verdade corre. Pelo menos é isso que pretendem.

 

Mas entre todas as investidas, nenhuma supera a guerra travada para a morte dos principais meios de comunicação, já oficialmente considerados pela Casa Branca como “a oposição”. Até o extremo de que em um dos seus devaneios, às 4h32 da madrugada, Trump declarou a imprensa como “A inimigo do povo”, por meio do Twitter.

 

No dicionário trumpista “inimigos” são os jornalistas que cometem a audácia de dizer verdades, de investigar os fatos, de vigiar os abusos de poder e expor a corrupção. Por isso, urge corroer a sua credibilidade. Até que chegue o momento em que a grande maioria da sociedade creia apenas no presidente e em seus meios servis.

 

Agora que se cumpre exatamente um século de que Lenin publicou, no jornal Pravda, o ensaio intitulado “O inimigo do povo“, não deixa de ser uma grande ironia histórica que um presidente dos EUA utilize idêntica retórica contra uma das instituições que desempenham um dos papeis cruciais na democracia mais antiga do mundo.

 

Só o tempo irá revelar quem é o verdadeiro inimigo do povo, se a imprensa ou Trump.

Só o tempo irá revelar quem é o verdadeiro inimigo do povo, se a imprensa ou Trump.

Rosa Townsend
Jornalista e colunista no jornal The Miami Herald – O Novo Herald / EUA - Espanha
É jornalista de política e investigação nos EUA. A partir de 1988, atuou como editora e repórter do The Miami Herald/El Nuevo Herald, integrando a equipe ganhadora do Prêmio Pulitzer, em 1993. Uma década mais tarde, trabalhou como correspondente nos EUA do jornal El País, onde cobriu diferentes acontecimentos, desde os ataques terroristas do 11 de setembro, até exclusivas em Guantánamo. Também cobriu eleições presidenciais norte-americanas durante 20 anos. Ao longo de sua carreira, escreveu para meios de comunicação como Yahoo News, BBC, Agence France-Presse e The Sun Sentinel. Há quatro anos, retornou ao The Herald como colunista, atividade que executa em paralelo à de comentarista política, na CNN, e em outras redes de televisão. [EUA - Espanha].

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