UNO Novembro 2022

Os Estados de Direito Democráticos Sociais Seguros

No início deste século, há vinte e dois anos apenas, inspirados em Fukuyama, autoproclamando-se como o “último homem” da evolução sociocultural e herdeiro da “última” forma de governo – a democracia liberal – o “europeu” caminhava euforicamente para uma Europa cada vez mais unida, capaz de atingir a “paz duradoura” a que se tinha proposto, integrar doze novos Estados de Leste, inimigos há pouco mais de uma década, oferecer-lhes um modelo económico e de Estado alicerçado numa moeda única e até, discutia-se então, congregados numa única federação.

Das três, só esta última não se realizou, muito por força da teimosia de franceses e irlandeses que o rejeitaram em referendos internos, e da oposição de um Reino Unido sempre entre a Europa e a América, mas a vitória deste modelo, político, económico e social, parecia tão esmagadora quanto inevitável. À luta pelo Estado de Direito dos séculos XVIII e XIX e à consagração dos direitos, liberdades e garantias, seguiu-se uma outra no século seguinte, capaz de mais do que reconhecer a existência de direitos dos cidadãos perante o Estado, proclamar um conjunto de princípios universais a que acresciam novos direitos como a saúde, a educação, a cultura ou o bem-estar. Assim foram criados os Estados de Direito Democráticos e Sociais das democracias liberais ocidentais, como modelo de “última geração,” que providenciavam aos cidadãos qualidade de vida como o mundo nunca vira. Aborrecidos de tanto conquistar, os “europeus” decidiram afirmar os seus valores “aqui e além-mar”, convencidos que o mundo “só pula e avança” na direção certa.

Enganaram-se e dentro da própria “casa”. Estados-membros houve que retrocederam neste processo, e foi a União a primeira a reconhecê-lo com condescendência, a mesma que encararam alguns “vizinhos” perigosos, e, nem um quartel de século decorrido, os “tempos e os ventos” parecem ter mudado. Depois de uma pandemia inesperada, mas ainda assim “migrada” de Oriente, a Europa, ou a União Europeia para ser factual, reagiu à altura dos Tratados e, ao contrário do início do século e quanto aos ditos PIGS, foi capaz de centralizar a distribuição de vacinas e reagir economicamente através da concessão de um conjunto de fundos europeus como nunca tinham sido vistos, na “bazuca” cuja designação, hoje porventura não tão adequada, parecia corresponder à dimensão do engenho.

A verdade é que os Planos de Recuperação e Resiliência (PRR), parecem hoje, e antes mesmo da maioria dos Estados da União Europeia os começar a executar e muito menos de deles beneficiar, um mero ponto de partida.

A Europa dava apoios, os empréstimos mantinham-se acessíveis, os juros, e os preços, baixos, e tudo parecia “ir ficar bem” como se anunciava. Eis que, e porque a História parece ser teimosa em repetir-se, uma das isoladas, mas vizinhas, “democracias iliberais” parece ter alterado todos os planos de sucesso. O Império Russo “contra-atacou” e consigo trouxe incerteza ao anunciado século da paz e da prosperidade. É certo que vivemos numa sociedade digital em que tudo se altera e transforma rapidamente, mas ninguém, em benefício de quem desempenha funções públicas, poderia supor a realidade que enfrentamos e a Europa parece ter regredido setenta anos. O crescimento económico, que tinha sido mais ou menos uma constante, parece abrandar definitivamente e os preços aumentam como há muito não se via. Esta circunstância, como quase tudo nos nossos tempos, simplificada numa palavra – estagflação – “decretou” o “fim do dinheiro barato” que suportou o nosso crescimento das últimas décadas e parecia ser suficiente para aguentar a pandemia. A verdade é que os Planos de Recuperação e Resiliência (PRR), aprovados em meados de 2021 recorde-se, parecem hoje, e antes mesmo da maioria dos Estados da União Europeia os começar a executar e muito menos de deles beneficiar, um mero ponto de partida, para não dizer documentos históricos.

A Europa dava apoios, e tudo parecia “ir ficar bem” como se anunciava. Eis que, e porque a História parece ser teimosa em repetir-se, uma das isoladas, mas vizinhas, “democracias iliberais” parece ter alterado todos os planos de sucesso.

Aqui chegados, “navegar à vista” e “viver dos juros” de um Estado Social que foi criado pelo esforço e pelo talento de gerações de europeus seguramente não chegará, e será preciso muito mais do que gerir os impactos do dia-a-dia, pois mais do que combater o aumento dos cereais, da energia ou dos combustíveis, será preciso visão e alma para encarar os desafios com que nos deparamos. Resistir à exposição europeia da economia russa; integrar milhões de pessoas, muitas delas qualificadas, que tiveram de fugir da guerra; reforçar as verbas dos orçamentos na Defesa; combater o crescimento dos custos de contexto; injetar investimento reprodutivo na economia e manter os Estados Sociais, não será tarefa fácil. Até porque, os impostos têm fim, muitos Estados já estão para além desse fim, e as exigências dos cidadãos cresceram numa área dispendiosa – a segurança, que já não exige  “apenas” material bélico, mas também segurança energética, alimentar, económica e até a cibersegurança e a segurança espacial. É por isso que o debate dos últimos dias, nomeadamente em Portugal, parece já não ser tanto acerca do PRR que temos, mas sim do PRR que teremos de ter, pois o século XXI, para nossa surpresa, não será o dos Estados de Direito Democráticos e Sociais, mas sim da construção dos Estados de Direito Democráticos Sociais e Seguros…

Nuno Magalhães
Diretor de Contexto Político na LLYC Portugal
Foi Secretário de Estado da Administração Interna entre 2002 e 2005. Posteriormente, foi deputado durante 14 anos, oito dos quais como presidente do grupo parlamentar CDS-PP. Foi também membro das comissões parlamentares de Economia, Inovação e Obras Públicas; Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias; Negócios Estrangeiros e Comunidades Portuguesas; e Assuntos Europeus. Licenciado em Direito pela Universidade Lusíada de Lisboa, é advogado e professor universitário.

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